sábado, 18 de julho de 2009

A crise é a causa da crise


Naquela cidade, todos viviam uma vida tranquila e sem surpresas, a não ser aquelas normais na existência da maioria das pessoas; a namorada que engravida inesperadamente, um acidente, um carro furtado, e vários outros que grande parte de nós já conhece, ou por ter vivenciado, ou por saber de alguém que já passou por algo semelhante.
Era uma segunda feira normal, preguiçosa, e continuaria assim se uma notícia nos jornais não deixasse pelo menos metade da população com a pulga atrás da orelha:

"Crise ameaça tomar conta do país"

"Crise? Como assim? - perguntava a pequena aglomeração em frente a vitrine da loja de revistas.
"Sei lá, deve ser alguma coisa relacionada a dinheiro, finanças, essas coisas todas que são um mistério para a maioria de nós" - disse um dos que estavam postados defronte a loja.
"Mas se é coisa que mexe com nosso dinheiro, acho melhor a gente procurar saber melhor do que se trata" - falou outra pessoa.
"Credo, mexer no meu dinheirinho suado? Nem pensar!"
"Virgem santa, acho que o melhor, por via das dúvidas, é nem mexer mesmo no dinheiro, vai saber se essa tal de crise pega todo mundo de calças curtas, hein?"
"Isso mesmo, enquanto não sabemos o que está havendo, o melhor a fazer é procurarmos não gastar, sabe como é...prudência nunca fez mal a ninguém..."

Aquela segunda feira seria lembrada anos após como "Aquela maldita segunda".

Fora essa notícia inquietante, tudo correu como deveria correr naquela semana, a não ser por alguns detalhes curiosos.
Curiosamente, o supermercado da cidade vendeu naquela semana, segundo estimativas do gerente do mesmo, cerca de 20% menos. Não era ilusão, afinal aquelas peças de carne, além das frutas, verduras e demais gêneros que se deterioraram por terem sobrado eram bem reais. O que fazer então? Óbvio, comprar menos do fornecedor, afinal de contas, tomar prejuízo em plena crise...ah, a tal "crise" que ninguém sabia o que era e nem de onde veio...
Sexta feira, 19:00h, a maioria dos comerciantes se encontrava no bar de costume para a "happy hour". O dono da padaria chegou, e logo avistou o gerente do supermercado sentado na mesa mais ao fundo, com uma expressão preocupada no rosto:

"Boa noite, que cara é essa, Seu Tonico?"
"Nem me fale, nem me fale...perdi muita mercadoria esta semana, Seu Jorge. Tive de jogar fora mais de cem quilos de carne e outro tanto de legumes e verduras."
"Caramba, mas o que acontece?"
"Sei lá, parece que o povo todo está de regime, ninguém compra mais nada...levam o essencial e olha lá, quem comprava dois quilos de feijão só levou um..."
"Então eu não errei nas minhas contas, esta semana me sobraram dois sacos de farinha, cheguei até a pensar que o padeiro estava fazendo pães menores" - disse Seu Jorge.
Naquele momento, chegava o mecânico; sentou-se defronte aos dois homens e pediu, como de costume, uma cerveja e uma dose de cachaça.
"Bartolomeu, vai me dizer também que esta semana não foi boa para você também..." - falou Seu Tonico.
"Ruim, ruim, até que não foi, mas poderia ter sido melhor. Tem gente andando a pé pra não ter de gastar com o carro."

Conversas assim repetiram-se, com pequenas variações, pela cidade inteira naquela noite.

E assim foram-se passando os dias, as semanas, os meses, ninguém comprava, consequentemente ninguém vendia; estabelecimentos comerciais fechavam as portas, arrastando consigo os fornecedores e produtores, dependentes lógicos das vendas ao consumidor. Com isso, cada dia fazia-se maior e mais assustadora a sombra do desemprego, com todas as suas horríveis consequências: fome, violência, desânimo e descrença geral.

Aquela cidadezinha, outrora próspera, agora não passava de uma aglomeração na qual via-se na fisionomia carrancuda e assustada dos seus habitantes o mais terrível e paralisante inimigo do homem: o medo.

Medo da pobreza, medo da violência, medo da falta de trabalho.

Esse estado de espírito geral refletia-se no aspecto da cidade; praças públicas, antes sítios aprazíveis, onde as crianças divertiam-se livremente sob o olhar zeloso porém tranquilo dos pais, transformaram-se em lugares horrendos nos quais a sujeira e o descuido eram regra, e os pequenos não mais se atreviam a brincar nas gangorras e balanços semi destruídos, menos por receio de um acidente do que de um assalto.

Aquela cidade chegara ao fundo do poço. Tudo isso por culpa da crise.

Mas, como diz a sabedoria popular, o lado bom de chegarmos ao fundo do poço é que não nos resta outra alternativa a não ser tentar ir para cima novamente. Alguém pensou assim, e inconformado com a situação, resolveu dar férias ao medo, pois de certa maneira, não mais fazia sentido temer qualquer coisa, afinal, tudo aquilo que era mais temido já havia acontecido mesmo.
Estando a mente desocupada do importuno hospedeiro chamado medo, que suga praticamente todas as energias do cérebro tal e qual um asqueroso carrapato psíquico, pode então a inteligência do homem manifestar-se e raciocinar logicamente, pois as consequências da tal crise foram lógicas, e somente pensando-se igualmente com clareza e lógica poderia-se atinar com a causa da desgraçada situação e arquitetar-se um plano de ações eficazes para resolverem-se os problemas causadores do infortúnio geral.

Chamemos esse alguém, na falta de melhor nome, de "O Pensador"

Sentando no banco da praça, com o sol aquecendo suas costas, a primeira coisa que veio à cabeça do Pensador foi a seguinte pergunta, a primeira dentre várias que seguiram-se naquele diálogo consigo mesmo:

" Afinal de contas, o que é a crise?"
"Ora, neste caso, é a falta de dinheiro, dinheiro este que serve para satisfazermos nossas necessidades pessoais, utilizando-o para adquirir bens tais como: alimentos, roupas, calçados."
"Mas o que acontece se eu não comprar, ou comprar menos do que necessito?"
"A resposta é lógica: em primeiro lugar, me ressentirei da falta daquilo que necessito e não adquiro, portanto minha qualidade de vida decairá. Em segundo lugar, sofrerá um declínio também a vida do comerciante, pois o mesmo não terá saldo suficiente para saldar as mercadorias que adquiriu do produtor, que consequentemente também não conseguirá arcar com os custos de sua produção"
"Quer dizer que o consumidor é o elo mais importante neste processo?"
"Sem dúvida. Se o consumidor não compra, o comerciante não vende, e logicamente o produtor não vende também; para tentar não ir à falência, tanto um como outro terão de cortar custos: diminuir o consumo de eletricidade, de água, e também o número de empregados, ocasionando o tão temido desemprego."
"Então, o consumidor é indiretamente reponsável pelo desemprego?"
"Sim e não. No caso do cliente ou clientes propositadamente diminuirem o volume de compras com o intuito de levar à falência o comerciante, os mesmos podem ser considerados culpados. Mas neste caso, o que levou à diminuição das compras não foi a livre vontade dos consumidores, mas sim, o medo da crise."
"Mas de onde veio este medo?"
"De uma notícia no jornal."
"Teria por acaso esta notícia aparecido do nada?"
"Certamente que não."
"Raciocinando-se, somente consigo imaginar que esta notícia poderia ter sido colocada unicamente por alguém que tenha interesse em que as pessoas não gastem seu dinheiro, ou seja, mantenham-o na conta bancária; não me sai da cabeça que esta tal de crise é coisa de banqueiro. Mas de que serve ao banqueiro o dinheiro empatado, parado na conta?"
"Simples. Quando surgiu o primeiro banco, seu proprietário assim dizia: -Se você tem medo de ser roubado, deixe seu dinheiro conosco, mediante o pagamento de uma pequena taxa, nós tomaremos conta dele para você. Possuímos guardas armados dia e noite, durma tranquilo enquanto vigiamos seu dinheiro."
"Ainda não entendi..."
"Chegaremos lá. Como naquela época eram muito mais frequentes os roubos e assaltos, os bancos tinham sob sua custódia quantidades cada vez maiores de dinheiro cujos donos mantinham-no lá o máximo de tempo possível, somente retirando a quantia estritamente precisa para suas necessidades mais urgentes."
"Entendo, o banqueiro ganha mais quanto maior a quantidade de dinheiro por ele guardada. Mas mesmo cobrando uma taxa proporcional à quantia guardada, em caso de um assalto, o dono do banco não poderia ir à falência?"
"Claro, mas um belo dia um banqueiro esperto teve uma grande idéia, e pensou assim: -Já que a maioria das pessoas prefere manter suas economias guardadas aqui em meu banco, bem que eu poderia utilizar o dinheiro delas para comprar mercadorias e revendê-las com lucro. A vantagem é que, além de não precisar utilizar dinheiro meu para tal empresa, ainda ficarei com os lucros das transações, aumentando o meu patrimônio particular, e em breve serei um homem rico! E ainda por cima, se meu banco for assaltado, terei uma reserva para indenizar aqueles que sofrerem prejuízo!"
"Então agora as coisas começaram a ficar claras para mim!"
"Exatamente. Para um dono de banco, o que interessa é que os clientes mantenham lá o seu dinheiro o maior tempo possível. Nem que tenham de inventar uma suposta crise para conseguir seu intento. Afinal de contas, a sua sobrevivência depende da aplicação do dinheiro alheio."
"Mas, o que acontece com aqueles que por não conseguirem honrar seus compromissos com seus devedores pediram empréstimo aos bancos? Se aos banqueiros interessa manter o dinheiro lá dentro, então emprestar, isto é, retirar dinheiro do banco não vai contra os interesses deles?"
"Sim, mas para isso inventaram os juros, que são, ou deveriam ser, uma compensação que o que toma emprestado deve pagar àquele que empresta, de forma a cobrir o que o banco ganharia se o mesmo utilizasse a quantia emprestada para, digamos, comprar maçãs e revendê-las com lucro."
"Todavia, conheço alguns comerciantes que pediram empréstimo ao banco e pagaram quantias que chegam ao dobro do que foi emprestado."
"Tem razão. Eis justamente a razão de em plena crise serem justamente os bancos as empresas que mais crescem. Como são justamente eles os donos do dinheiro, dinheiro alheio dos correntistas diga-se de passagem, então impingem uma espécie de ditadura: -Se quiserem dinheiro emprestado, tem de ser à minha maneira!"
"Entendi. Os bancos inventam uma crise com o intuito de fazer com que as pessoas mantenham lá seu dinheiro, e em consequência disto, o comércio em geral vai se apertando, e para não falir, recorrem aos empréstimos, e lá vai o banco a ganhar novamente mais ainda..."
"Perfeito. Os bancos causam a doença, e também vendem o remédio. Só que é um remédio vendido exclusivamente pelo próprio banco, e que ainda por cima não cura a enfermidade, ao contrário, deixa o desgraçado organismo cada vez mais fraco de maneira que fique mais sujeito a novas doenças, que precisarão de mais remédios que não curam, e tudo gira assim numa roda que não tem mais fim."
"Malditos sejam! Não terá cura por acaso essa doença?"
"Tem sim. Como na maioria dos casos, melhor do que curar-se é evitar ficar doente."
"Como fazer isto?"
"Simples. Já chegamos à conclusão que a falência do comércio e dos produtores é consequência lógica da diminuição de suas vendas, e que o consumidor é o elo mais importante."
"Sim, continue."
"Você se lembra daquela maldita segunda feira? Acredito que naquele dia ninguém estava sem emprego, e nem tinha o salário diminuído. Por que então aquele medo todo de usar o dinheiro? Medo da crise?"
"Tem razão. Fomos todos vítimas do medo, só de ouvir falar na tal crise enfiamos a cabeça no buraco tal qual fazem as avestruzes, ao invés de mantermos os olhos abertos para ver de onde vinha o real perigo."
"Então, por mais que venham notícias de crise, não deixem de comprar aquilo que necessitam. Não digo esbanjar, isto é, comprar mais coisas que necessitam, mas sim, comprarem o que realmente precisam, pois o dinheiro precisa circular, é o sangue da economia, cada vez que deixo de adquirir o que preciso e posso adquirir, alguém vai sofrer as consequências; destas, acho que não preciso falar, pois você já sentiu na carne o que pode acontecer. Não deixe o dinheiro parado na conta do banco, não o esbanje, mas sim, utilize-o, ele é seu, é fruto de seu trabalho, é justo que ele trabalhe para você, e não para aqueles que vivem da exploração da miséria criada por eles mesmos.
"Mas, por outro lado, se eu quiser guardar dinheiro para comprar algo mais caro futuramente, seria errado então colocar o dinheiro na poupança?"
"Veja bem, nada errado há em poupar, mas pense bem: se você coloca determinada quantia, digamos, $100,00 na caderneta de poupança, quanto você terá ao término de um mês?"
"Bem, deixe-me lembrar...acho que em torno de 1% a mais, se chegar a isso, então terei $101,00."
"Certo, agora lhe pergunto: se você pegar os mesmos $100,00 e comprar, por exemplo, 50Kg. de maçãs a $2,00 o Kg., e revendê-las a $2,50 o Kg., você terá então $125,00, muito mais do que a poupança lhe paga, e provavelmente num prazo muito menor, nem é preciso esperar um mês! Além disso, ao comprar produtos do produtor, ainda o estará ajudando."
"É bem real isto. Agora lembrei-me de que um certo conhecido meu precisou fazer um empréstimo no banco do qual era correntista. Sabe quanto cobraram-lhe de juros? Mais ou menos 5% ao mês! Quer dizer, quando você põe o dinheiro na poupança, isto é, empresta suas economias ao banco, eles pagam somente 1% ao mês na melhor das hipóteses. Já quando a situação se inverte, você tem de lhes pagar no mínimo 5% ao mês. Que grande negócio!"
"Excelentíssimo negócio, não é à toa que os bancos são as empresas mais prósperas do país!"
"Se todos fizerem isto, a quantia de dinheiro nos bancos não vai diminuir?"
"Claro que sim, assim como também diminuirá a quantidade de empréstimos solicitados aos bancos, pois quando o comerciante ganha bem, consequência lógica dos consumidores estarem gastando normalmente, não terá ele a necessidade de contrair empréstimos de instituições vampirescas, comprará também cada vez mais do produtor, que em virtude da quantidade cada vez maior adquirida pelo comerciante, baixará seus preços, e se o dono do estabelecimento for consciente e honesto, repassará este desconto aos seus clientes, que então comprarão ainda mais e assim todos prosperarão."
"Então acha que os bancos devam extinguir-se?"
"Veja bem, não acho que exista nada de ruim nos serviços bancários, o que existe de negativo é o abuso cometido, que consiste em criar uma situação na qual praticamente obriga-se o infeliz sujeito a tomar o amargo remédio que não cura, e mantê-lo nesta situação humilhante e degradante somente em benefício de uma minoria. Não há nada de mal em ter-se lucro, desde que esse lucro não venha à custa do sofrimento e desespero alheio. O crédito é necessário, grande parte do desenvolvimento de uma nação depende dele, mas quando esse crédito passa a ser escravidão a interesses exclusivos de alguns, então todo e qualquer benefício para a sociedade que poderia originar-se deste crédito anula-se. Por exemplo, se um médico obtém crédito para montar uma clínica em uma pequena cidade, mas ao mesmo tempo vê-se obrigado a destinar quase todo seus recebimentos para saldar as dívidas oriundas de um financiamento extorsivo, esse mesmo médico trabalhará exaustivamente somente para não ficar inadimplente, sendo obrigado forçosamente a desviar sua missão da finalidade principal, que seria com o tempo aumentar sua clínica, ou adquirir mais e melhores equipamentos de maneira a atender mais e melhor seus pacientes, que é a finalidade última de um médico. Na verdade, estará trabalhando para o banco, e não para a população. Multiplique-se esta situação por mil, ou um milhão de casos separados, e terá então o motivo verdadeiro da má situação da nação."
"Fantástico, a coisa explicada assim fica clara, ao contrário daquela linguagem cheia de palavreado técnico que os economistas falam na TV, e mais confunde do que esclarece"


"Sr. Prefeito, Sr Prefeito, acorde, já são quase oito horas!"

A secretária batia na porta do gabinete, pois havia visto o automóvel do prefeito em frente ao prédio e certamente ele havia novamente adormecido em cima da mesa de trabalho.

Com um sobressalto, o prefeito daquela pequena cidade despertou de seu sonho, por instantes permaneceu confuso naquele estranho estado que é o limiar entre o sonho e a realidade, porém logo já se achava de pé e senhor de seus pensamentos.

"Meu Deus, que sonho! Se não me acordassem, não sei quando iria terminar aquela história da tal crise! Estaria mentindo se disser que tudo aquilo que sonhei não me impressionou até o fundo da alma!"

O prefeito estava em seu gabinete desde a noite anterior, a fim de dar uma espiada em alguns documentos que havia esquecido lá e lembrara-se à última hora. Havia sentado-se em sua mesa, colocado uma música relaxante enquanto remexia e relia alguns papéis, e nesse meio tempo, devido ao cansaço acumulado durante a semana, acabara adormecendo e sonhado ali mesmo.
Já com o sono espantado para longe de si, abriu a janela, que dava para a praça principal da cidade, de onde se avistava do outro lado a loja de revistas; qual não foi sua surpresa quando reparou numa multidão que se aglomerava junto à vitrine da loja.
Com o coração batendo descompassadamente, lavou o rosto, e foi praticamente correndo que chegou à loja no outro lado da praça. Abrindo caminho na multidão, ficou face a face com o jornal que trazia estampada na primeira página a notícia que foi o motivo de tamanha aglomeração:

"Rita Cadillac fará show no Ginásio Desportivo amanhã às 21:00h"

Uma onda de alívio passou pela sua cabeça. Virou-se e voltou à sede da Prefeitura, sorrindo e caminhando calmamente. Os transeuntes que ali passavam entreolharam-se espantados; um deles falou:
"Não sabia que o prefeito era assim tão fã da Rita Cadillac, olha só o jeito que ele veio correndo pra ver o jornal! E ainda saiu com um sorriso deste tamanho!"













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